“Aquela bela jóia era um
sonho, um delicado tesouro.
Mas
vivi também em uma fazendo no interior de São Paulo, quase perto de Minas Gerai,s
que nos pertencia desde que os primeiros portugueses puseram os pés em solo
paulista. Da janela deste quarto onde durmo desde que nasci, sempre pude ver os
contornos azulados das serras daquelas bandas de Minas – sempre foram meu prazer
e consolação. Observá-las era imaginar-me na borda do fim do mundo – de onde
para alguns eu tinha retornado... A distância da qual me acenavam era o meu
remédio e meu material de sonho.
Eu
sempre tive de tudo e, o que não tinha, meu pai mandava buscar, estivesse onde
estivesse. Desde pequena, qualquer mimo, por mais caro ou absurdo que fosse,
tinha que ser meu e não importavam nem preço e nem procedência. E eu era bem
habituada neste jogo... E, o mais engraçado, e hoje eu penso nessa ironia, era
o fato de que eu, que tinha tudo o que quisesse, precisasse me apropriar,
indevidamente, daquele magnífico anel e conspurcar tudo o que ele representava
ou pudesse representar. Muitos anos mais tarde, quando tive coragem de encarar
, finalmente, minha consciência, é que pude ouvi-la a me dizer que não só
roubara a jóia, mas a alma e a vida de outra pessoa...
O tédio no campo era uma veneno para
a minha alma que se habituara às novidades e à falta de limites. Passava o
tempo inventando festas e bailes. Eram sempre bons motivos para unir os
bem-nascidos da região, hábito aprendido com meus pais que tinham como
altamente satisfatório para cumprimento de seu plano e, secretamente, o meu
também: encontrar alguém de meu nível social e intelectual e que gostasse,
tanto quanto eu, de alguma agitação. Meu sonho era morar onde as coisas
aconteciam – em São Paulo, Rio de Janeiro, ou outro lugar na Europa...
Entretanto foi uma grande decepção quando acabei por dar pelo provincianismo
tacanho dos poucos rapazes interessantes do lugar: suas parcas pretensões
giravam em torno de manter ou aumentar a produção das terras da família. Cedo
percebi que meu lugar, de fato, não era aqui."
I
Ana Lívia
fechou cuidadosamente o grosso volume que lia. Fora impossível não ler as
palavras de abertura daquele antigo diário encontrado dentro do baú de pele
enegrecida ornamentado com tachas e cantoneiras de latão. Estranhou que aquela
relíquia estivesse esquecida, a um canto, naquela edícula úmida e escura.
__ Quando
se compra uma casa tão velha – observou o homem – também se compra suas
histórias...
Ana Lívia
levantou-se e abriu a janela empoeirada.
Se Sergio
Couto identificou-lhe a amargura, nada comentou.
__ Mas não
é possível vivermos sem amontoarmos histórias, fantasmas e até tristezas ou
alegrias...não acha? – perguntou-lhe sorrindo, distraidamente, enquanto
acariciava os cabelos finos e em desalinho da criança, que entrara naquele
preciso momento gritando feliz porque acabara de achar um lugar perfeito para
um balanço. Ana Lívia estendeu os braços e aconchegou o filho de seis anos.
Os três saíram de lá, o menino desembestou pelo grande quintal. Haviam árvores muito velhas, com troncos cheios doe musgo e lianas, canteiros ressequidos e roseiras empalidecidas abraçados por grandes ramos de erva daninha - abandono e solidão. Folhas castanhas escondiam o caminho de tijolos e pedras até à casa. Ana Lívia olhava atentamente para o chão umedecido pela vegetação, com medo que o velho advogado claudicante não tivesse apoio suficiente com a sua bengala. Segurou-lhe o braço e pode sentir, ainda, algum vestígio de carnes firmes. Na varando o homem sentou-se em uma velha cadeira de vime toda empoeirada. As fibras rangeram sob o seu peso e ele deu um meio-sorriso.
__ Essa cadeira nunca gostou de mim. Sempre achou-me gordo e sempre geme quando eu me sento.
Lívia parecia não ouvir. Seus olhos atentos percorriam o conjunto de vime avaliando, como fizera com as restantes instalações da casa, se ainda poderia recuperá-lo. Enxergava em tudo uma elegância de outros tempos embrutecida pelo pó e pelo descaso.
__ Não se preocupe - disse o advogado percebendo seus pensamentos - sempre foi uma bela casa. Resistiu durante muito tempo e resistirá ainda mais... Seria uma pena, se eu não conseguisse vendê-la e tivesse que a entregar nas mãos do banco. Seria um encerramento de carreira muito infeliz... - e um grande espirro estrondou de seu grande nariz.
__ O senhor com essa alergia e sentado aí...
__ Antigamente isso teria importância, porque a alergia incha meus olhos e deixa esse meu nariz parecendo uma beterraba. - gargalhou e o riso virou tosse, que ele abafou com o lenço. Secou os cantos dos olhos sacolejando os ombros de mansinho, ainda a rir. - Eu era tão vaidoso, queria sempre estar parecendo um daqueles heróis de fita... sabe, aqueles mocinhos do cinema... - gesticulava, a mão enrugada segurando o lenço embolado entre os dedos trêmulos. - Um almofadinha... era assim que me chamavam.
Ana Lívia sorriu. Observou-lhe melhor o rosto e constatou pelos traços daquele homem de 90 anos, que de fato ele deveria ter sido muito bonito.
Já era fim de tarde quando deixou-o em frente a sua casa. Uma garota de uns oito anos veio ao seu encontro e segurou em sua mão. Poderia ser sua neta ou bisneta. Ana Lívia desviou os olhos para o filho que dormitava no banco de trás e indagou-se porque certos homens não teriam a mesma sorte que Sergio Couto - lúcido e dono de si ainda aos 90 anos e desfrutando da família que vira crescer... Constatou que seu filho Pedro iria crescer, passar por todas as fases que passam os homenzinhos da sua idade, dar-lhe um ou mais netos, provavelmente ... e ela iria segurá-los ao colo, falar com sua nora sobre eles, acompanhar-lhes a vida... mas para Pedro seu pai seria apenas uma vaga lembrança e para seus futuros netos, apenas uma fotografia...
Acelerou o carro, precisaria chegar logo a São Paulo; tinha tanta coisa para o dia seguinte... Precisaria resolver tanta burocracia, enquanto os pedreiros, a mando de Sergio Couto, deixavam em ordem a velha casa recém adquirida. Ganhou a rodovia com um medo apertando-lhe a garganta. A pequena cidade ira desaparecendo pelo retrovisor. Olhou para trás e sentiu medo. Á frente, o breu da estrada; as luzes ocasionais dos faróis dos outros veículos também lhe davam pavor. Chuva rala tamborilou no pára-brisa. Pensou nos papéis, papéis, papéis a preencher, despachar, resolver... Se a vida já era complicada por si só, a morte tornava-a documentos, números e estatísticas. Após perder o seu amor, tinha medo que sua vida, de fato, também se tornasse apenas burocracia.
CONTINUA...
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