quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

BANHO EM ÁGUA DE MALVAS


                          “Aquela bela jóia era um sonho, um delicado tesouro.

             Impossível dizer a verdade, impossível dizer que não era meu aquele precioso anel, impossível admitir que o amor que ele simbolizava não era e nunca seria para mim...

              fui capaz de entender minha atitude anos mais tarde... justamente neste meu tempo de  sofrimento, quando páro e começo a pensar sobre tudo o que vivi e me congratulo com certas coisas feitas e vividas enquanto outras, que saíram do quarto escuro em que as escondi por medo e vergonha, espantam-me e assustam-me.

             Hoje, quando mais o pudor da alma, que a própria coragem obriga-me a contar essa história que está há tanto tempo inconfessavelmente presa em minhas entranhas, quando começo a escrevê-la com o sol de fim de tarde batendo em cheio sobre estas páginas, quase cegando minhas vistas fracas com seu esplendor, tenho vontade de começar assim: “Yo vivia en un barrio de Madrid...” daquele poeta dos Andes, que fora jovem quando escrevera esses versos  e termina com “... la sangre en la calle”. Mas o sangue nesta minha história não representa a morte, mas a vida e as gerações que vi passar ao longo desses meus anos de culpa solitária.

             Sim, eu vivi em um bairro de Madrid, onde experimentei o ópio e me inebriei com o sexo embalada pelo despudor do anonimato, as noites passadas em claro no frenesi descompassado da poesia, da melancolia, do vinho, da névoa dos cigarros e da filosofia que embotava a alma e a razão. Vivi em Madrid fugida, a monte, escapava com mentiras bem elaboradas dos meus tutores lisboetas, sequiosos de me proporcionarem a mais fina educação européia e, quem sabe, para alívio deles, devolverem-me aos meus pais no Brasil, já com casamento arranjado com promissor doutor da Baixa , com brasão e algo mais,  formado em Coimbra...

             Quando fiz oito anos meus pais me enviaram para um rico e conceituado Colégio de São Paulo e lá fiquei interna até os dezesseis anos, quando uns parentes  portugueses dispuseram-se a dar continuidade à minha formação acadêmica e social. Da Europa só retornei aos 21 anos de idade, quando então minha família já tinha se reduzido a meu pai e eu.      

            Mas vivi também em uma fazendo no interior de São Paulo, quase perto de Minas Gerai,s que nos pertencia desde que os primeiros portugueses puseram os pés em solo paulista. Da janela deste quarto onde durmo desde que nasci, sempre pude ver os contornos azulados das serras daquelas bandas de Minas – sempre foram meu prazer e consolação. Observá-las era imaginar-me na borda do fim do mundo – de onde para alguns eu tinha retornado... A distância da qual me acenavam era o meu remédio e meu material de sonho.

            Eu sempre tive de tudo e, o que não tinha, meu pai mandava buscar, estivesse onde estivesse. Desde pequena, qualquer mimo, por mais caro ou absurdo que fosse, tinha que ser meu e não importavam nem preço e nem procedência. E eu era bem habituada neste jogo... E, o mais engraçado, e hoje eu penso nessa ironia, era o fato de que eu, que tinha tudo o que quisesse, precisasse me apropriar, indevidamente, daquele magnífico anel e conspurcar tudo o que ele representava ou pudesse representar. Muitos anos mais tarde, quando tive coragem de encarar , finalmente, minha consciência, é que pude ouvi-la a me dizer que não só roubara a jóia, mas a alma e a vida de outra pessoa...
 
            O tédio no campo era uma veneno para a minha alma que se habituara às novidades e à falta de limites. Passava o tempo inventando festas e bailes. Eram sempre bons motivos para unir os bem-nascidos da região, hábito aprendido com meus pais que tinham como altamente satisfatório para cumprimento de seu plano e, secretamente, o meu também: encontrar alguém de meu nível social e intelectual e que gostasse, tanto quanto eu, de alguma agitação. Meu sonho era morar onde as coisas aconteciam – em São Paulo, Rio de Janeiro, ou outro lugar na Europa... Entretanto foi uma grande decepção quando acabei por dar pelo provincianismo tacanho dos poucos rapazes interessantes do lugar: suas parcas pretensões giravam em torno de manter ou aumentar a produção das terras da família. Cedo percebi que meu lugar, de fato, não era aqui."                                      
 
 
                                                                 


 I
   
            Ana Lívia fechou cuidadosamente o grosso volume que lia. Fora impossível não ler as palavras de abertura daquele antigo diário encontrado dentro do baú de pele enegrecida ornamentado com tachas e cantoneiras de latão. Estranhou que aquela relíquia estivesse esquecida, a um canto, naquela edícula úmida e escura.
             Estendeu o velho livro com desvelo e com medo que se desintegrasse para Sérgio Couto. O velho advogado e consultor imobiliário segurou-o com sua mão trêmula e em seguida esfregou o volumoso nariz com o lenço amarfanhado, após um estrondoso espirro. Sorriu tranquilamente à jovem vestida de negro ainda ajoelhada ao lado do baú. Quase balançou a cabeça em sinal de desaprovação. Achava um tremendo mau gosto uma mulher tão jovem e bonita guardar luto daquela maneira... mas jamais passaria por sua cabeça desrespeitar-lhe a dor.

            __ Quando se compra uma casa tão velha – observou o homem – também se compra suas histórias...

            Ana Lívia levantou-se e abriu a janela empoeirada.

             __ Espero que sejam somente histórias... já não posso com fantasmas e tristezas.

            Se Sergio Couto identificou-lhe a amargura, nada comentou.

            __ Mas não é possível vivermos sem amontoarmos histórias, fantasmas e até tristezas ou alegrias...não acha? – perguntou-lhe sorrindo, distraidamente, enquanto acariciava os cabelos finos e em desalinho da criança, que entrara naquele preciso momento gritando feliz porque acabara de achar um lugar perfeito para um balanço. Ana Lívia estendeu os braços e aconchegou o filho de seis anos.
 
            Os três saíram de lá, o menino desembestou pelo grande quintal. Haviam árvores muito velhas, com troncos cheios doe musgo e lianas, canteiros ressequidos e roseiras empalidecidas abraçados por grandes ramos de erva daninha - abandono e solidão. Folhas castanhas escondiam o caminho de tijolos e pedras até à casa. Ana Lívia olhava atentamente para o chão umedecido pela vegetação, com medo que o velho advogado claudicante não tivesse apoio suficiente com a sua bengala. Segurou-lhe o braço e pode sentir, ainda, algum  vestígio de carnes firmes. Na varando o homem sentou-se em uma velha cadeira de vime toda empoeirada. As fibras rangeram sob o seu peso e ele deu um meio-sorriso.
 
            __ Essa cadeira nunca gostou de mim. Sempre achou-me gordo e sempre geme quando eu me sento.
 
            Lívia parecia não ouvir. Seus olhos atentos percorriam o conjunto de vime avaliando, como fizera com as restantes instalações da casa,  se ainda poderia recuperá-lo. Enxergava  em tudo uma elegância de outros tempos embrutecida pelo pó e pelo descaso.
 
            __ Não se preocupe - disse o advogado percebendo seus pensamentos -  sempre foi uma bela casa. Resistiu durante muito tempo e resistirá ainda mais... Seria uma pena, se eu não conseguisse vendê-la e tivesse que a entregar nas mãos do banco. Seria um encerramento de carreira muito infeliz... - e um grande espirro estrondou de seu grande nariz.
 
            __ O senhor com essa alergia e sentado aí...
 
            __ Antigamente isso teria importância, porque a alergia incha meus olhos e deixa esse meu nariz parecendo uma beterraba. - gargalhou e o riso virou tosse, que ele abafou com o lenço. Secou os cantos dos olhos sacolejando os ombros de mansinho, ainda a rir. - Eu era tão vaidoso, queria sempre estar parecendo um daqueles heróis de fita... sabe, aqueles mocinhos do cinema... - gesticulava, a mão enrugada segurando o lenço embolado entre os dedos trêmulos. - Um almofadinha... era assim que me chamavam.
 
             Ana Lívia sorriu. Observou-lhe melhor o rosto e constatou pelos traços daquele homem de 90 anos, que de fato ele deveria ter sido muito bonito.
 
             Já era fim de tarde quando deixou-o em frente a sua casa. Uma garota de uns oito anos veio ao seu encontro e segurou em sua mão. Poderia ser sua neta ou bisneta. Ana Lívia desviou os olhos para o filho que dormitava no banco de trás e indagou-se porque certos homens não teriam a mesma sorte que Sergio Couto - lúcido e dono de si ainda aos 90 anos e desfrutando da família que vira crescer... Constatou que seu filho Pedro iria crescer, passar por todas as fases que passam os homenzinhos da sua idade, dar-lhe um ou mais netos, provavelmente ... e ela iria segurá-los ao colo, falar com sua nora sobre eles, acompanhar-lhes a vida... mas para Pedro seu pai seria apenas uma vaga lembrança e para seus futuros netos, apenas uma fotografia...
 
             Acelerou o carro, precisaria chegar logo a São Paulo; tinha tanta coisa para o dia seguinte... Precisaria resolver tanta burocracia, enquanto os pedreiros, a mando de Sergio Couto, deixavam em ordem a velha casa recém adquirida. Ganhou a rodovia com um medo apertando-lhe a garganta. A pequena cidade ira desaparecendo pelo retrovisor. Olhou para trás e sentiu medo. Á frente, o breu da estrada; as luzes ocasionais dos faróis dos outros veículos também lhe davam pavor. Chuva rala tamborilou no pára-brisa. Pensou nos papéis, papéis, papéis a preencher, despachar, resolver... Se a vida já era complicada por si só, a morte tornava-a documentos, números e estatísticas. Após perder o seu amor, tinha medo que sua vida, de fato, também se tornasse apenas burocracia.
 

 
 
 
 
 
 
 
                                                                                                                                               CONTINUA...
 
 


 

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